Crônica 2: "Deus é brasileiro, e corredor!"

Ele se auto-intitulava viciado em corrida e não perdia a chance de tentar convencer qualquer um a começar a correr. E se a pessoa a ser convencida era um sedentário convicto daqueles que acha que o homem não foi feito para corrida, mas sim para o descanso, ai é que a discussão se prolongava com as argumentações a favor da corrida.


– Como é que o homem não foi feito para correr?! Pois saiba você que se nossos ancestrais que viviam nas cavernas não corressem tão bem, certamente hoje nós não estaríamos aqui, pois eles teriam sido comidos por leões, ursos e outros bichos mais velozes. E pense aí em uma manhã típica de uma família de Astrelopitecus: logo cedo o pai astrelopitecus tinha que sair para caçar. Se ele encontrasse um animal pequeno, porém rápido, ele tinha que correr para conseguir alcançá-lo; ao contrário, se ele achasse um animal grande e feroz, ele teria que correr para não ser alcançado. A mamãe astrelopitecus, ao contrário, ficava na caverna esperando o maridão chegar com a comida do dia, mas se, de repente, ela tivesse a visita inesperada de um urso ou outro animal semelhante, ela teria que sair correndo para não virar almoço. Assim sendo, para sobreviver eles tinham que correr, seja para caçar seja para não ser caçado e foi assim que ficamos em pé e desenvolvemos musculatura específica para a corrida.

E, se o interlocutor não se convencesse com essa estória dos tempos das cavernas ou então decidisse contra argumentar que já não estávamos morando nas cavernas e podíamos nos dar o luxo de ficar sentando ou deitado, sem nunca mais precisar correr, ele se exaltava e ia atrás de outros argumentos mais convincentes.



Naquele dia, a discussão era com um protestante convicto, sedentário de carteirinha e, obviamente, obeso, que insistia, por crença ou por proveito próprio, que o homem não era para correr, mas sim para ficar sentado e lendo, de preferência a Bíblia Sagrada. Após várias tentativas frustradas de convencer o preguiçoso evangélico, ele notou que precisava tocar mais fundo o coração do religioso. Mudou então o assunto da discussão, passando a citar trechos mais conhecidos da Bíblia, aliás, os poucos que ele conhecia. As discussões estavam cada vez mais acaloradas, resultado da empolgação usual de quando se fala sobre a Bíblia. O protestante acreditava piamente no que estava escrito na Bíblia, sendo literal na maioria das interpretações dos textos discutidos, como se aquelas escrituras tivessem sido passadas pelo fax do céu diretamente para ele. O corredor ouvia e aceitava as argumentações do evangélico que a esta altura estava mais pregando do que discutindo alguma coisa. O terreno estava apenas sendo preparado para a cartada final no convencimento do sedentário de que a corrida era essencial e deveria ser praticada por todos. A única maneira do protestante aceitar aquilo como verdade era se Deus pessoalmente dissesse para ele começar a correr. O diálogo transcorreu assim:

– A conversa está muito boa e já entendi que na Bíblia estão exatamente as regras que devemos seguir para ter uma vida espiritual saudável e que nos salvemos no dia do juízo final – voltando então ao assunto da corrida, ele continuou – Mas você já imaginou se no dia D, Deus chegar e disser que a prova final será de 10km e os que chegarem primeiro irão para o céu e os últimos serão condenados?

– Deixa de falar besteira, rapaz – respondeu rispidamente – Deus não quer saber se você é corredor ou não.

– Mas está na Bíblia!!!

– Como assim? Onde você viu isso? – perguntou mudando totalmente o tom de voz e a expressão facial.

– Vamos ler a Primeira Carta aos Coríntios, capítulo 9:24. Aqui diz “Não sabeis que os corredores numa corrida correm todos, mas apenas um recebe o prêmio? Correi de tal modo, que o possais alcançar” – o evangélico arregalou os olhos espantado por nunca ter visto aquele trecho do livro sagrado. Viu que seus dias de sedentarismo estavam ameaçados e prestes a acabar, mas tentou uma última estratégia para minar a obrigatoriedade da corrida. – Não é bem assim, Ele não está se referindo ao sentindo literal da corrida. Além do mais, não existe outro lugar onde Ele mencione novamente esse negócio de corrida.

– Como não? – preparou o desfecho fatal – Veja então Hebreus capítulo 12:1 “...corramos, com perseverança, a carreira que nos está proposta...”. Eu tenho lhe chamado todo dia para uma corridinha lenta e saudável, mas você não ta nem aí. Cuidado! Como dizemos, Deus é brasileiro, e corredor...

O evangélico saiu daquela discussão com uma pulga atrás da orelha e no dia seguinte já estava em uma loja de esportes escolhendo um par de tênis de corrida. A partir daquele dia a corrida passou a ser parte da rotina dele e as pregações agora não mais se limitavam à tentativa de conversão religiosa, mas também atlética.

Amém!